O Fascismo existiu em Portugal: uma análise 50 anos depois da invasão policial do ISCEF — “1972-2022: um olhar pessoal sobre a violência organizada do fascismo em Portugal”. Por Júlio Marques Mota

Nota de editor:

Publicámos ontem o primeiro de três textos sobre o Portugal dos anos 1960-1970: um relato factual sobre a invasão e carga policial no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), hoje denominado Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) da Universidade de Lisboa, ocorrida em 16 de Maio de 1972 (ver aqui). O segundo – que publicamos agora – e terceiro textos, da autoria de Júlio Marques Mota, mostram como era a violência organizada do fascismo em Portugal e bem assim a precariedade que se vivia no tempo do fascismo em Portugal.

Nesta pequena nota não podemos deixar de sublinhar a imagem que acompanha esta mini-série de textos: os cinco NÃOS que eram explicitamente afirmados e defendidos pelo fascismo em Portugal: Não discutimos Deus, Não discutimos a Pátria [colónias incluídas], Não discutimos a Família, Não discutimos o Trabalho, Não discutimos a Autoridade. Uma versão detalhada do “come [o que te derem…] e cala [senão sofrerás as consequências…]” dessa época. Uma sociedade opressora, sem liberdade.

Era uma época em que a polícia, para além de perseguir, prender, torturar, e até assassinar os opositores do regime, invadia o espaço universitário (Cidade Universitária em Lisboa, Universidade em Coimbra, Instituto Superior Técnico, Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras) onde espancava estudantes e professores, e também assassinou, dentro de um anfiteatro do ISCEF, o estudante José Ribeiro Santos, em Outubro de 1972, um preciso retrato do contexto de violência que enquadrava o dia-a-dia. Era uma época em Portugal pobreza extrema, de analfabetismo (em 1960 o analfabetismo atingia 33% da população – mais de 50% em 1940 – e em 1974 ainda atingia 1/4 dos portugueses), de emigração (entre 1960 e 1973, 1,5 milhões de portugueses tiveram de deixar o país em busca de trabalho e liberdade, ou seja, 17% da população).

No campo os dados referidos por Júlio Marques Mota no texto sobre a precariedade, são reveladores das extremas condições de pobreza que se vivia então. Note-se que os dados disponíveis sobre o salário mensal mínimo na agricultura se reportam a 1977 e era de 17,5 euros! (ver Pordata aqui). No início dos anos 1960, um operário indiferenciado (o próprio Júlio Mota) auferia 24 escudos/dia, o equivalente a 10 euros atualmente. Tão somente alguns dados, que não cabe aqui aprofundar, sobre a situação precária em que vivia a maioria da população portuguesa.

 

FT


Caros amigos e amigas

Pediram-me um artigo para um livro a ser publicado em comemoração dos 111 anos do ISEG.

Dizem-me:

“Um dos momentos é a publicação de um livro contendo pequenas histórias/depoimentos relatando episódio(s) ou memórias vividas por cada um dos participantes na sua relação com o ISEG. Essas histórias, breves, deverão aproximar-se de página e meia.

Como não podia deixa de ser, um dos acontecimentos a ser referido é a invasão de Maio de 1972 na qual foste, se bem me lembro, vítima preferencial. Ocorreu-me pois que seria interessante ter um depoimento teu sobre isso. Será possível ? No entanto, poderá ser outro o tema se o julgares mais interessante.” Fim de citação

Disse que sim, mas hesitei na história a relatar. Sobre a repressão física do fascismo ou sobre a sua repressão intelectual? Os 111 anos não me diziam nada em si-mesmos. Uma questão de capicua?   Não vou nessa. Este ano comemoram-se os 111 anos do ISEG e…alto lá, comemoram-se também os 50 anos sobre o ano mais violento que já se viveu no ISEG, muitos feridos numa tarde de maio de 72, entre os quais eu, e um morto num anfiteatro em Outubro do mesmo ano, o estudante José Ribeiro Santos. Ao fixar o número 1972 perdi as hesitações: iria falar sobre a violência física e não só, mas partindo basicamente desta.

Escrevi então um texto autobiográfico, não de página e meia, não sei escrever textos pequenos ao contrário do que se possa dizer, e não sei sobretudo quando estes são ditados pelo nosso estado de alma a que dou o título de 1972-2022: um olhar pessoal sobre a violência organizada do fascismo em Portugal. Um texto sobre um longo período que marcou a alma de muitas gerações e também sobre um dia, uma tarde, em que a invasão da polícia de choque ao ISEG marcou o meu próprio corpo para sempre. Condensando e em muito o que nele se descreve, conseguiu-se um texto de 8 páginas. Era o borrão do qual sairia depois o texto final de 2 páginas, se eu o conseguisse transformar nessa dimensão e se dele gostasse.

Recebo depois um relatório encontrado no espólio de Francisco Pereira de Moura em que se descreve o que foi o inferno naquela tarde de maio de 1972 no ISEG e com a informação de que seria publicado no dia 12 de Outubro na sessão de homenagem a José Ribeiro Santos. Sugeri então que o meu texto fosse editado em simultâneo com este relatório uma vez que versava a mesma temática, o que foi aceite, e tomei-o como definitivo. Os textos estão disponíveis no sítio do ISEG em https://www.iseg.ulisboa.pt/pt/2022/10/ribeiro-santos/

É este relatório [ver publicação de ontem em A Viagem dos Argonautas, aqui] e o meu texto que aqui vos deixo.

Com estes dois textos que se agrafam sobre o tempo que passa, aqui vos deixo ecos da violência de outrora, a violência organizada de forma sistemática pelo Estado fascista. Que esta violência não seja esquecida por quem a viveu nem ignorada por quem nunca a conheceu é o objetivo do meu texto autobiográfico como é também, penso eu, a intenção do ISEG quando torna público o chamado relatório Francisco Pereira de Moura. Fascismo nunca mais, é o que se cantou nas ruas do país de Abril e é o que deveremos continuar a cantar. E devemos continuar a fazê-lo porque os tambores que anunciavam a violência naquele tempo foram rearranjados com novas e sofisticadas estruturas e com peles de efeitos de repercussão mais suaves para a mesma música e já se começam agora a ouvir ao longe. Esperemos que seja só isso.

Boa leitura

Coimbra, 12 de Outubro de 2022

Júlio Marques Mota


10 m de leitura

1972-2022: um olhar pessoal sobre a violência organizada do fascismo em Portugal

 Por Júlio Marques Mota

Em 12 de Outubro de 2022

 

Hoje fui ao dentista, mais uma vez. Tudo isto porque carrego um problema nos maxilares que vem desde uma tarde em maio de 1972. Um dos maxilares foi fraturado e um dos côndilos nunca ficou bom desde essa sofrida tarde no ISEG.

Pediram-me um texto nesta tarde, agora, sobre a minha passagem pelo ISEG onde escreveria também sobre essa outra tarde de 1972. A resposta foi pronta: talvez, mas sem compromisso.

Aqui estou eu a procurar satisfazer esse compromisso, a procurar relembrar-me dessa tarde primaveril, praticamente 50 anos depois. É um olhar para trás já um bocado desfocado, passou muito tempo, correu muita água por debaixo das pontes e as nossas lentes já gastas pelo tempo, a idade, perderam o polimento que dá precisão à nossa visão.

Falarei então por pinceladas sobre uma época, sobre um país, sobre uma escola, sobre uma tarde de maio.

Tinham passado quatro anos sobre o maio de 1968, os efeitos em Portugal eram visíveis, alimentados por uma guerra que ia criando cada vez mais vítimas, cada vez mais gente em desespero perante o seu futuro, sobretudo os filhos da pequena e média burguesia que teriam pela frente o serviço militar. Estávamos em 72 e tínhamos um país segmentado em:

  1. um Portugal profundo, o meio rural, a viver ideologicamente a verdade do regime e, economicamente, a ser vítima dos preços agrícolas relativos baixos, a que chamávamos troca desigual interna.
  2. uma classe operária genericamente desfasada entre o em-si como classe e o para si como comportamento de classe, a viver de baixos salários nominais e beneficiando da política agrícola de preços baixos. A acrescentar a isto, era introduzida em Portugal o que poderíamos chamar mais tarde de maquilhadora, bacias industriais de montagem, colocadas na periferia de Lisboa, utilizando sobretudo trabalhadoras culturalmente indiferenciadas. Neste período e neste segmento industrial a pressão das multinacionais sobre o governo exigindo a desvalorização do escudo era enorme. A ganância destas empresas não tinha limites: não bastava os salários nominais baixos que eram pagos às pessoas, era preciso torná-los ainda mais baixos em moeda estrangeira. Não hesitaram depois em abandonar o país com o 25 de Abril largando milhares de mulheres na rua, sem emprego, sem nada e com as raízes das suas origens já perdidas. Deduza-se o resto…
  3. um segmento de trabalhadores que podia ser rotulado de aristocracia “operária” e politicamente agressivo: Bancários, Lisnave, Setenave, Siderurgia.
  4. um setor serviços nada dinâmico e de empregos de baixo valor acrescentado. Passava a não haver escoamento fácil no mercado de trabalho para os novos licenciados.
  5. uma juventude universitária que tinha pela frente a ida para a guerra colonial.
Coimbra 1969: crise estudantil

Éramos um país, de todos os pontos de vista, amordaçado, silenciado. E isto fazia-se sentir nos movimentos de estudantes, do Técnico, Letras, Económicas, Faculdade de Ciências e outras faculdades. O governo de Marcelo Caetano era heterogéneo, vacilava entre as forças representativas do salazarismo e as forças ligadas à ideia de Primavera Marcelista. Dois exemplos, Veiga Simão pelas segundas, Gonçalves Rapazote pelas primeiras.

IST Lisboa, manhã de 16 Maio 1972

 

Chegamos assim a Maio de 72. Era necessário eliminar Veiga Simão e, para isso, era preciso lançar o caos nas Universidades. Não chegava a sua cedência com a criação dos “gorilas”. Era preciso dar mais à direita, o que Veiga Simão não dava. Inventou-se uma revolta dos estudantes de Económicas a que era necessário responder com a polícia de choque. Pessoalmente estava, como centenas dos meus colegas, em aulas. Eu estava em Economia Agrária com o Professor Joaquim Lourenço, mais tarde um político do PSD e, já agora, meu amigo pessoal. Como estudante, estava no dia certo, no local certo e na hora certa a cumprir a minha missão de estudante: estar em aulas. De repente sabe-se que a polícia de choque está a invadir Económicas. Uns alunos fugiram, foram para casa, outros, como eu, dirigiram-se para onde estava a polícia de choque. Aí estava já Francisco Pereira de Moura. Face à polícia fiquei na linha da frente, muito perto de Francisco Pereira de Moura.

Este professor tenta demover a polícia, explicando que não havia nenhuma movimentação de estudantes. Em vão, ouve-se a ordem para a polícia avançar. Ainda me lembro de ver um polícia com o seu cassetete a querer disparar de alto para baixo contra a “careca” de Francisco Pereira de Moura e de um grito do comando: “a esse não”. Evitou-se milimetricamente a pancada! A polícia avança e os estudantes recuam. Fugimos para dentro do edifício. Avançamos perdidos pelos corredores. Alguns, como eu, dirigem-se para a chamada sala 32, hoje sala dos professores. Tento fugir pela janela, no lado oposto à porta. Há um saguão com 3 níveis, tipo escada, a que se tem acesso pela janela em frente à porta de entrada na sala. Do outro lado do saguão está o telhado da emissora nacional.

Abril 1973 Aveiro III congresso oposição democrática

 

Hesito no salto, entre saltar para o primeiro patamar do saguão ou para o telhado da emissora. Tenho medo que o telhado da emissora ceda com o meu salto e opto pela descida pelo saguão, para me refugiar num dos pisos abaixo. Uma decisão de milésimos de segundo. Os sapatos, de luva, tinham ido à vida e as meias não eram de puro algodão do Egipto. Salto, caio e tento levantar-me para saltar para o piso debaixo e, quando me levanto, escorrego: as meias eram de muito nylon e de pouco ou nenhum algodão. O extremo desse patamar era em telha, esta partiu-se com o meu peso quando escorrego e eu parti-me quando caio para o segundo piso do saguão, caindo de forma descoordenada em cima de um monte de pedras. Fico imobilizado. Alguém, depois, me vai buscar. Sou levado para a clínica São Bento em frente ao portão de entrada na Miguel Lupi. Terei entrado em estado de coma, segundo me disseram. Sou depois interrogado pela PIDE, não sei onde, lembro-me apenas de que era num gabinete de pouca luz. Não houve da minha parte nenhuma resposta, escorria sangue pela boca. Mais tarde doía-me a cara. Sou enviado para o Hospital de S. José. Daqui, lembro-me de dois momentos:

Momento 1. Numa maca sentia o sangue escorrer-me pela boca. Sou filho desse Portugal profundo, de camponeses pobres, muito pobres, sou filho desse Portugal profundo escravizado pelo corporativismo e massacrado pela troca desigual interna, a exploração invisível, o que aprendi no terceiro ano com Arghiri Emmanuel e a sua Troca Desigual. Tinha uma preocupação: vou morrer, o meu pai já morreu, que vai ser da minha mãe, viúva, analfabeta e camponesa sem terra. Dessa maca, desse corredor, ainda hoje me recordo e diria, como Margarite Yourcenar, o meu corpo era ali como um rio, um rio de lágrimas.

Sou operado e colocado numa enfermaria de 6-8 camas e, se a memória não me falha, era uma enfermaria incrivelmente vazia, como se em Portugal não houvesse doentes a mais. Fiquei literalmente proibido de falar, com os maxilares fixos e bem apertados por fios de metal especial. Apenas bebia líquidos por uma palhinha e pelo espaço deixado por um dente que na queda também saltou. Ouço o que me dizem, respondo em pequenos bilhetes de bloco notas.

Cantina Cidade Universitária Lisboa, Novembro de 1968

Dois dias depois chega a minha mãe, imagem ferida do Portugal profundo acima referido. Vestida de preto como se impunha a qualquer viúva daquele estrato, sem uma lágrima nos olhos, pergunta-me como é que estou. Preciso de um “intérprete”, neste caso a minha namorada de então e depois minha mulher até um amanhã que espero esteja ainda longe. A minha mãe não sabia ler nem escrever embora ninguém fosse capaz de a enganar nas suas contas. Algoritmos! É a minha namorada que lhe lê as minhas respostas.

A velha que está à minha frente tipifica esse Portugal profundo e sente-se ferida pelo que não compreende. Não compreende por que tem o filho ali, numa cama de hospital quando, do ponto de vista dela, e do meu igualmente, não teria feito mal a ninguém. Sabe que gosto de broas de mel, mas filho de camponês pobre não gostava de doces e comia-as com azeitonas cordevil, azeitonas mais ácidas que as outras espécies. Diz-me o que comes, como comes, e dir-te-ei de onde vens, terá dito dito Marx em Grundrisse. A minha mãe diz-me que trazia um cabaz de broas, broas que não podia comer, dei-as. E conta-me uma história:

Quando soube que estava no hospital, vai à sua mercearia e compra farinha e açúcar. O resto dos produtos necessários tinha ela. Encontra na loja uma prima que tinha um filho, professor primário em Lisboa. Este sofria de epilepsia dita de grande mal. Fui eu que tratei de tudo quanto a médicos, tratamentos, com um reconhecimento especial ao Professor José Luís Simões da Fonseca de quem fiquei amigo e que o tratou. A mãe dele estava-me reconhecida por isso mesmo. Mas… a ideologia fascista, a verdade oficial, veio-lhe ao de cima e esqueceu-se de tudo o resto. Vira-se para a minha mãe e insulta-a dizendo-lhe que devia ter vergonha por ter um filho comunista. E acrescentou: o teu filho devia mas é estar preso. A ideologia do fascismo em toda a sua plenitude: quem não é por nós é contra nós e quem é contra nós é comunista e quem é comunista deve ser preso. De resto, era o que se fazia com os militantes que pertenciam às estruturas do Partido Comunista. A diabolização em pleno enraizada em muita gente do Portugal profundo estava ali bem à vista, nesta história dolorosamente narrada, onde se espelha o que era a Besta fascista…

Cela do Aljube. Museu do Aljube

 

Momento 2. Tenho alta, são-me retirados os fios metálicos que me fixavam os maxilares, volto para casa, na Rua Gomes Freire. Pouco tempo depois telefona-me o Vítor Nogueira dizendo que um colega nosso está retido na cantina, não pode ir para casa porque a PIDE está à espera dele à porta da sua casa e não tem para onde ir. A pressão da PIDE sobre os estudantes mantinha-se apesar dos acontecimentos ocorridos. Aliás, na sequência da ocupação feita pela Polícia, soube mais tarde, por um cunhado do Veiga Simão – que trabalhava na minha terra em levantamentos topográficos – que houve a seguir um Conselho de Ministros onde o Veiga Simão se atirou à pancada contra Gonçalves Rapazote. Tiveram de ser separados por outros membros do Conselho! Não veio nada nos jornais. Mas o telefonema do Vítor indicava que a PIDE não aliviava a pressão sobre o movimento estudantil. No caso, tratava-se do Chico Cal. O Vítor Nogueira pergunta se ele pode ir para minha casa. Digo-lhe que não é o local mais indicado mas, entre a certeza de ser preso e a possibilidade de não ser preso, não havia escolha, que viesse então. Porém a minha casa não era o local certo, naquele contexto.

Arranjei-lhe uma casa de campo alugada por um casal de amigos meus, na linha da Costa da Caparica, perto da Praia da Riviera, creio ser esse o nome, entre a Praia da Rainha e a do Rei. Sei hoje que esses amigos já morreram e daqui saúdo vigorosamente a sua memória. Com esse empréstimo da casa e com os riscos que lhe estavam associados entravam assim na cadeia de solidariedade que iria proteger o Chico Cal.

Tortura da Estátua. Desenho de Jaime Serra, 1949

 

O Chico Cal entrava desta forma na clandestinidade, sem meios para tal. Encarregou-se a minha namorada de lhe levar a comida duas a três vezes por semana. Comprava a comida no “supermercado” militar, na Rua Artilharia 1 (o pai dela era oficial da Marinha) e levava-lha. Nesta missão, cada vez que ia ter com o Chico, era falta garantida às aulas na Faculdade de Ciências. À terceira semana assinala-me que podia ser perigoso ir sozinha ter com o Chico. Estávamos em Junho. A camioneta no trajeto da Costa à Fonte da Telha ia sempre praticamente vazia. A meio do percurso ela saía e era uma jovem com uns sacos que se metia por uma vereda pelo campo fora! Tornava-se demasiado visível, para não dizer mesmo estranho, que uma rapariga sozinha se metesse pela mata adentro. A minha namorada tinha razão no que dizia, era melhor reduzir o risco, pensámos.

Face ao que ela me diz sinto que não tenho ninguém a quem recorrer porque podia pôr em perigo quer a vida do Chico, quer a de alguém a quem me dirigisse no nosso meio, a pedir ajuda, e decido então ir eu. Recorro a um amigo do Técnico, um estudante distante das lutas académicas, peço que me leve lá de carro. Deixa-me no mesmo sítio onde ficava a minha namorada, ele ia até à Fonte da Telha, dava por lá umas voltas, e invertia a marcha para me recolher e trazer para Lisboa.

Logo na primeira vez, e única, chego ao pé do Chico Cal e ele diz-me: passou por aqui a GNR e eu disse-lhe o que tu me disseste: que estou em época de exames e que vim para aqui estudar por concessão do arrendatário do senhor Campos, o titular da casa. Fiquei assustado. Tinha lido nos jornais que dias antes um alto quadro do PCP na clandestinidade tinha sido apanhado por aqueles lados. E como reação disse-lhe: fizeste bem e conto-lhe o caso do quadro do PCP. Temos de ir embora, acrescentei. Deixa a comida aqui. E voltámos para minha casa. Tempos de solidariedade aqueles. Arriscava-se muito por um colega, por um amigo ou conhecido, pela ideia de liberdade, independentemente das ideias que esse colega representava. Era este o caso. Eu nada tinha a ver com a linha política do Chico, maoísta. No entanto, era preciso cobrir aquela situação da passagem da GNR pelo quintal da casa. Um dia ou dois depois, o grupo de estudo de que eu fazia parte e a minha namorada fomos para ali estudar um dia inteiro de sábado com almoço e tudo: era preciso comer a comida que se tinha levado. Alguns do grupo sabiam a razão por que íamos para ali, outros não. Era melhor não saberem, no caso de haver bronca. Eu fiquei até domingo. Um ou outro dos meus colegas de sábado voltou para me fazer companhia, ficámos como retaguarda para uma eventual passagem da GNR.

Coloquei depois o Chico na casa de uma amiga minha, na Rua Dr. Mascarenhas de Melo. Esta amiga, funcionária da rádio e escritora, tinha uma empregada doméstica. Apresenta-lhe o Chico como seu tradutor. Dias depois a empregada telefona para a minha amiga, que estava no emprego, e diz-lhe: olhe que o seu tradutor não traduz nada. A minha amiga assusta-se e explica-lhe que é preciso que ele leia muito primeiro, mas fica-lhe o medo no ar. Dias depois um incidente grave: o Chico comia lá em casa. Pudera. E a porteira do prédio dirige-se à minha amiga e pergunta-lhe a rir que mudanças teria havido lá por casa para haver muito mais lixo. Fala-me nisso e a minha reação foi a mesma: tem de sair. E saiu para uma outra casa, arranjada da mesma maneira.

“Holandinha”, Campo do Tarrafal em Cabo Verde: “um pouco mais alta que um homem em pé, pouco mais comprida que um homem deitado, pouco mais larga que um homem sentado, com uma pequena janela gradeada” e “um autêntico forno”.

Tempo de fascismo, tempo de escutas, tempo de vigilância, era um tempo do 1984 de Orwell mas com meios rudimentares. Uma porteira numa rua podia dar conta de tudo o que se passava nessa rua, utilizando uma arma clássica: a coscuvilhice com outras porteiras. E a PIDE servia-se disso. Face ao conhecimento desta realidade, que desconhecia até aí, fiquei com muito mais respeito pelos múltiplos anónimos do PCP que viveram anos e anos na clandestinidade, onde o medo da prisão ou da morte rondava a cada esquina. Mas eles tinham estruturas de apoio, a esquerda estudantil não.

Nesta fuga de casa em casa, o Chico Cal passou por mais uma outra casa, numa clandestinidade arranjada por um seu colega, eu, sem nenhuma experiência de organização política, até que fugiu para o estrangeiro. Voltou depois do 25 de Abril, e voltou bem. Encontrámo-nos. Depois deste encontro nunca mais o vi. Curiosamente, a mesma situação ocorreu com uma colega da Faculdade de Ciências, hoje líder autárquica do PSD algures, e repetiu-se quase a papel químico.

Conto este pormenor porque ele mostra-nos a incapacidade organizativa dos estudantes enquanto oposição ao sistema. Esta oposição de forma estruturada estava sobretudo num outro lado, no PCP, quer se queira quer não. Porquê então esta pressão policial sobre o movimento estudantil? A resposta parece-me simples: o sistema político estava fragilizado e não suportaria grandes convulsões estudantis como suportou a crise de 62 ou a de Coimbra de 69. Cairia em 72 se se repetisse em intensidade uma qualquer destas duas crises, dada a sua fragilidade política. Era preciso não correr riscos deste tipo, pensava a extrema-direita portuguesa, era preciso vedar todos os caminhos que a esse tipo de crises pudessem levar. Isso impunha à PIDE uma enorme pressão sobre os líderes estudantis.

A complicar este trabalho da PIDE acrescentava-se o facto de o movimento estudantil estar relativamente fragmentado pelas chamadas “linhas de orientação política”, uma fragmentação que funcionaria em princípio a favor das instituições de repressão o que confirmaria a expressão dividir para reinar. Mas não funcionou assim, funcionou ao contrário. Dada esta fragmentação, multiplicavam-se então os actos de perturbação estudantil, produzidos pelo movimento estudantil associado a cada uma das tendências, inclusive com perturbações relâmpago na rua e sem que algumas delas fossem sequer anunciadas. A PIDE, perturbada, passou a multiplicar os reforços policiais na deteção e na consequente repressão dos seus dirigentes. É ainda neste enquadramento que ocorre o assassinato do estudante Ribeiro dos Santos em Outubro do mesmo ano. Ainda hoje me comovo quando recordo as imagens do seu funeral, ainda hoje me recordo do mar de gente na sua despedida no largo de Santos.

ISCEF, anfiteatro, 12 de Outubro de 1972, assassinato de José Ribeiro Santos

 

O trabalho de deteção e perseguição aumenta de intensidade e confirmava-se pois que não há machado que corte a raiz ao pensamento ou que neutralize a sua capacidade de difusão, de influência. E esta raiz tinha de ser bloqueada por todos os meios possíveis, caso contrário podia alastrar e reforçar as forças políticas de oposição existentes fora das Universidades e criarem-se nesta conjugação perigosos focos de instabilidade política. Era nesta repressão e neutralização que Gonçalves Rapazote e a extrema-direita apostavam. Não esquecer que, em cada movimentação estudantil na rua ou nas faculdades, era a chama da liberdade que era empunhada e difundida, o que para o sistema era perigoso. No poder ou próximo dele, e contra esta linha política de extrema-direita, refiram-se os nomes de Galvão Telles e de Adriano Moreira antes de 72 e, depois, os de Veiga Simão, Miller Guerra, Rogério Martins, João Cravinho e de muitos outros moderados à esquerda. A todos estes moderados deve a sociedade portuguesa muito, não o ignoremos.

Desta múltipla movimentação advinha um outro perigo. O que esta esquerda estudantil mostrava, em termos gerais, era a sua inquietação existencial, a revolta tinha mais a ver com a negação do quotidiano que lhe estava a ser imposto e, não o esqueçamos, com a guerra pelo meio, do que com uma visão política sólida sobre o futuro. Alguns tinham-na, conheci vários, tanto de Económicas como de outras faculdades, mas não chegavam para se considerar como uma oposição política ao sistema. Para isso era preciso mais, muito mais. E esse muito mais veio com a realidade do 25 de Abril.

A terminar este texto sobre acontecimentos de há cinquenta anos, penso que o 25 de Abril veio confirmar que a extrema-direita portuguesa tinha razão, do seu ponto de vista, em considerar perigosos e em querer reprimir e neutralizar os diversos movimentos estudantis de esquerda mas por razões que ela nunca poderia imaginar: os quadros estudantis criados e consciencializados neste clima de revolta foram peça importante na concretização do golpe militar do 25 de Abril e muito mais importantes foram ainda na sua transformação deste golpe militar em Revolução Popular, dadas as características do Portugal profundo acima referidas, mas essa é toda uma outra história.

 

1 Comment

Leave a Reply